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Ex-presidente da ANA alerta: má-gestão pode levar à apagão das águas no Brasil

Gestão das águas precisa estar entre as bandeiras na luta por um Brasil democrático e sustentável, ambiental, econômica e socialmente, diz Vicente Andreu em artigo.

No Dia Mundial da Água, 22 de março, data que tem o objetivo de conscientizar a sociedade  sobre a importância da gestão eficiente dos recursos hídricos e também sobre os impactos da ação humana sobre os rios e a necessidade de preservação, o ex-presidente da Agência Nacional de Águas  (ANA) Vicente Andreu faz um alerta sobre os retrocessos registrados nos últimos anos na gestão da água no Brasil.

Segundo ele, a transferência de todo o Sistema de Gestão, inclusive da ANA para o Ministério do Desenvolvimento Regional alterou completamente a concepção na gestão de águas, “de uma visão sustentável para uma visão meramente utilitarista, focada em obras”, o que contribuiu para utilização ”perdulária da água e, principalmente, à degradação escandalosa dos principais mananciais das grandes e médias cidades brasileiras”.

Em trecho do artigo intitulado Retrocessos na gestão da água, Andreu afirma: “Não há como ser otimista diante de um governo negacionista da ciência em todos seus aspectos, com uma visão utilitarista, antidemocrática e retrograda na gestão dos recursos hídricos”, se referindo ao presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) que, desde o início da pandemia do novo coronavírus tem brigado com a ciência, levando o país a ser citado como o que pior está gerindo a pior crise sanitária do século.

Andreu encerra o texto dizendo que há “a imperiosa necessidade de resistir aos retrocessos em curso, mas principalmente de colocar a gestão das águas também entre as bandeiras na luta por um Brasil democrático e sustentável, ambiental, econômica e socialmente”.

Confira a íntegra do texto

Retrocessos na gestão da água

Assim como em diversos outros setores, o governo Bolsonaro tem promovido uma série de retrocessos no sistema de gestão de recursos hídricos do país. Sem alcançar grande visibilidade através da grande mídia e – neste caso de maneira inexplicável – também através de órgãos de gestão nos estados e nos comitês de bacia hidrográfica, os retrocessos do atual governo rompem e solapam a tradição de todo o processo histórico de construção de um sistema cujos pilares são, entre outros, a gestão descentralizada, participativa e em articulação com o Sistema Nacional de Meio Ambiente.

Em 2018, o Brasil sediou o 8º Fórum Mundial da Água, quando foram apresentadas diversas experiências e propostas para fazer avançar o sistema de gestão deste recurso vital.  O Fórum foi realizado durante o Governo Temer, mas as reflexões apresentadas foram sendo construídas ao longo de anos da implantação do sistema, cujo marco principal foi a Lei 9.433, de 1997, a conhecida Lei das Águas.

O primeiro passo foi a transferência de todo o Sistema de Gestão, aí incluída a Agência Nacional de Águas (e agora de Saneamento) – ANA para o Ministério do Desenvolvimento Regional, fato que não representa apenas uma troca de “caixinhas”, mas sim a mudança radical da concepção na gestão de águas, de uma visão sustentável para uma visão meramente utilitarista, focada em obras. Essa mesma visão utilitarista, nas décadas de 50 a 80, levou à perdulária utilização da água (temos índices de consumo habitante/dia no país incompatíveis com o uso racional e a segurança hídrica) e, principalmente, à degradação escandalosa dos principais mananciais das grandes e médias cidades brasileiras. Como exemplo, basta lembrar que a crise hídrica de 2014/2015 foi – muito mais do que a escassez das chuvas – a soma de uma gestão eleitoreira de altíssimo risco para não caracterizar um apagão tucano nas águas e a existência de grandes quantidades de água poluídas e indisponíveis para o tratamento e o consumo, como a represa Billings e os rios Pinheiros e Tiete no trecho urbano da região metropolitana de São Paulo. Nesta transferência de Ministérios houve um primeiro silêncio “ensurdecedor” das instituições do Sistema Nacional de Águas.

Na sequência, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, órgão máximo do sistema de gestão de águas foi reduzido de 57 para 37 membros, precarizando ainda mais a participação dos Estados e da sociedade civil. Mais governo federal e menos descentralização e participação. Alguém ouviu algo sobre isto? Mais um inexplicável silêncio.

A incorporação da supervisão regulatória em saneamento pela ANA sempre esteve vinculada ao incremento de recursos para o exercício desta nova atividade, bem como no aumento do número de servidores.  Nenhum centavo ou servidor foi acrescido à ANA; isto significa, concretamente, que parte dos recursos para a gestão da água está sendo utilizada para a supervisão regulatória em saneamento, com nítido prejuízo para o sistema de águas.

Embora as estatísticas brasileiras em água sejam aparentemente virtuosas quanto à disponibilidade (12% da água superficial do planeta, bacias imensas como a Amazônica e outras, aquíferos), a realidade aponta para o aumento do consumo em diversas atividades, como nas cidades e na irrigação, assim como na persistente poluição de mananciais que facilitam a política de empresas de saneamento de irem buscar água cada vez mais longe (e mais caro, com mais obras) dos locais de consumo. Há, neste caso, um estado letárgico da maioria da opinião pública, que acaba por justificar impactos ambientais imensos, irreversíveis e desnecessários também com barragens potencialmente criminosas, como a barragem de Pedreira, no rio Jaguari, na região de Campinas, que está situada a menos de 2 quilômetros do centro de uma cidade com 40 mil habitantes; basta apenas a falha na operação desse sistema para que as consequências sejam catastróficas.

Somado a uma conjuntura desfavorável na gestão de recursos hídricos no país, o aquecimento global impactou de maneira dramática o clima do planeta com a alteração profunda do ciclo hidrológico.  Já se demonstrou que a água existente no planeta praticamente não se altera há milhões de anos, porém sua distribuição natural está modificada. Alguns insistem em avaliar que a média histórica de várias décadas é um instrumento adequado para a gestão dos recursos hídricos, quando está demonstrado que a mesma média pode ser obtida por variações muito grandes. Como exemplo, se no passado em um dado mês chovia 60 (não importa a unidade), no outro 40, tínhamos uma média de 50. A média de 50 pode não ter se alterado, mas hoje ela é o resultado de 90 em um ano e 10 no outro, com as consequências de inundações e escassez associadas. São os efeitos dos chamados (e reais!!!) eventos extremos. A média hoje é seu dom de iludir.

Não há como ser otimista diante de um governo negacionista da ciência em todos seus aspectos, com uma visão utilitarista, antidemocrática e retrograda na gestão dos recursos hídricos. Inexplicável parece ser a postura acrítica de centenas de instituições, entre elas os comitês de bacia hidrográfica, diante de todos estes retrocessos.

Há, portanto, a imperiosa necessidade de resistir aos retrocessos em curso, mas principalmente de colocar a gestão das águas também entre as bandeiras na luta por um Brasil democrático e sustentável, ambiental, econômica e socialmente.

Vicente Andreu

Ex-presidente da ANA

FONTE: Central Única dos Trabalhadores 

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